domingo, 25 de outubro de 2009

SAUDADE


Hoje acordei com uma saudade dolorosa do Manoel, amigo querido com quem tive o privilégio de conviver nos últimos 28 anos. Leal, fiel, generoso, atencioso, esteve comigo até o dia 1º de abril, ocasião em que expirou, mansamente.
Tenho evitado, desde então, falar sobre o assunto e esta é a primeira vez que escrevo sobre o fato: escrita necessária, inadiável, catástase.
Meu amigo se foi e me sinto tão só...Idéias mirabolantes, pensamentos fúteis, acontecimentos trágicos ou cômicos, com ele tudo eu podia compartilhar. Amigos próximos-distantes éramos, já que o nosso acelerado estilo de vida não nos permitia encontros frequentes.
De vez em quando era meio chato, pedante e malvado o meu amigo, mas este era o jeito dele de dizer que não estava lá muito de bem com a vida, e de qualquer forma, esta postura se desvanecia nas brumas do meu amor, porque eu o amava, e como o amava!
Era franzino como a Olívia Palito, tinha os dentes dianteiros separados e uma calvície pronunciada. Preocupava-se com a mãe, lamentava a indiferança de alguns parentes e adorava os sobrinhos, dos quais não se cansava de falar e de elogiar (teria gostado de ser o pai deles). Comprava CDs e livros compulsivamente. Adorava música, e era fã incondicional de cinema, assuntos que dominava e que preenchiam as suas conversas.
À dor da perda do Manoel fui obrigada a acrescentar um outro sentimento: a tristeza incomparável de saber que ele não pode/não teve coragem/não teve oportunidade de revelar abertamente a sua alma delicada de mulher, desde sempre encerrada num invólucro que ele repudiava.
Jamais se esqueceu de me enviar cartões natalícios, de me parabenizar nos aniversários e de outras tantas sutis gentilezas que dão suavidade ao viver.
Gostava de satisfazer minhas predileções e me presenteava com livros. Tenho um deles nas mãos: Escolha o seu sonho, de Cecília Meireles. Também quero mimá-los com um dos textos nele contidos:


O ESTRANHO ENCONTRO

Efetivamente a rua era aquela; e o velho palácio estava na minha frente. Era um palácio de trezentos anos, cor de barro, que me parecia muito familiar quanto ao desenho de sua alta porta, aos ornatos das colunas e ao lançamento da escada do vestíbulo. Apenas o seu abandono me assombrava: as portas internas tinham vidraças quebradas, de onde pendiam velhas teias de aranha. E num dos aposentos laterias eu podia mesmo ver cordéis estendidos de parede a parede, com roupas desbotadas e irreconhecíveis, que ali tinham sido postas a secar.
Não podia acreditar nos meus olhos, e avancei, pelo vestíbulo sombrio. Mas uma voz me advertiu que eu devia subir a escada. O lavor do corrimão enternecia-me. (Em que infância desceria e subiria estes degraus que, apesar de não estarem limpos, me causavam tanta emoção?)
E pouco a pouco descobri a natureza sonora do palácio. Os barulhos da rua detinham-se à porta. Por dentro, ele era musical, sensível, como as caixas de ressonância dos instrumentos de corda. O meu passo adquiria uma vibração como a do vento nas árvores; no ar havia o zumbido que existe no interior dos caramujos.
Em cima, era bem diferente. Criados de libré pareciam apenas pintados; tapetes imensos estendiam oceanos de flores sobre um pavimento que, no entanto, sentia crepitar sob os meus pés; grandes espelhos oxidados ostentavam suas molduras suntuosas em redor dos vidros baços; os móveis eram escassos, com sedas antigas, de cores esmaecidas.
Pensei que havia muita gente, mas achei-me sozinho. Os donos da casa vireram ao meu encontro, delicadamente, devagar e em silêncio. Procurei recordar em que retrato os tinha visto; seus trajes não se usavam mais, nem seus penteados. Nem mesmo as suas feições. Havia lacaios em todas as paredes e eram todos iguais. E fui sendo levada pra longe, para um salão imenso, com bustos esculpidos em nichos altos.
Aparadores vastos, com anjos e colunas, sustentavam porcelanas e pratas. A mesa, coberta de aparato, era extremamente longa, e deram-me um lugar no meio. Parecia-me impossível conversar, tão longe ficavam os donos da casa, de um lado e de outro.
Mas veio um copeiro servir-me; e nos pratos não havia nada; e os copos estavam vazios e na molheira que me ofereciam achava-se apenas a colher. Os donos da casa olhavam-me com grande atenção e eu fazia o possível por não manifestar nenhuma surpresa e esperava que começassem a comer a refeição inexistente, para ver o que eu mesma devia fazer. Eles, porém, não se moveram. A senhora tinha nas orelhas brincos de uma das minhas avós. Contemplavam-me com atenção, como quem procura inutilmente reconhecer alguém.
Os pratos foram recolhidos, vieram outros; novas bandejas vazias apareceram muito bem apresentadas - porque os copeiros faziam primorosamente o seu serviço.
Depois, o casal desapareceu, fundiu-se no ar da sala; os móveis evaporaram-se, as paredes sumiram. E fiquei só, à sombra de uma árvore, vendo, muito longe, aos meus pés, um vale profundo, coberto de névoa azul.
Ao meu lado, uma velha estátua de Ceres contemplava comigo a solidão. E chegou um pastorzinho, que me entregou uns ramos de violetas, dizendo-me: "Senhora, não fique triste, mas os velhos deuses morreram!"
E senti as mãos molhadas: não sei se dos meus olhos, se das violetas.

1 comentários:

  1. Uma homenagem muito bonita ao seu amigo.Parabéns!!!Lindo seu texto.Obrigada pela doce visitinha, volte outras vezes. Fiquei muito feliz.Beijos

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