Sua mãe nasceu no mar e era, inteirinha, amor ao mar. Ah! Você quer saber o que é o amor… Amar é querer trazer para bem perto aquilo que está longe, abraçar, esforço de pôr dentro aquilo que está fora, beber, com prazer, aquilo que fez os olhos sorrir. Pois é: ela bebia do mar tudo o que via, e o mar nela morava e ela o mar namorava: a imensidão azul mistério, as coisas que viviam nas suas funduras: corais vermelhos, algas verdes, peixes de cores brilhantes, incebergs branco-gelados de mares não vistos, músicas silenciosas de catedrais encantadas. Assim era o corpo da jovem. Você acha estranho? Pensava que o corpo era feito de carne, de sangue e de ossos? Puro engano. Nosso corpo é feito daquilo que o amor pôs lá dentro. E onde o amor quis, mas não pôde, ficou um vazio, que é onde mora a saudade… Assim era o corpo daquela jovem, quase menina: havia os sons acolhidos por seus ouvidos, barulho de ondas, um paciente ir e vir sem fim como a vida… Odores de coisas marinhas entravam lá dentro pelas narinas pulsantes e faziam bem a lugares ocultos; perfumes azuis de marolas e aromas de pérolas brancas… (Você já sentiu isso, o bem que um perfume faz, num lugar de dentro da gente que a gente nem sabe onde fica?) Sua pele brincava com a água e se arrepiava toda quando a brisa lhe fazia cócegas. E em seus olhos se viam gaivotas de brancas asas e barcos a vela ao vento. Quem lhe ouvisse o coração bater juraria que eram ondas… Seus seios, conchas lisas que abrigavam criaturas macias. Seu ventre, lugar de mistérios, como a vida secreta do mar, caverna escura onde nadavam peixes minúsculos e invisíveis sementes ficavam à espera. Mas havia uma coisa que ela não podia entender: era uma tristeza, suave, nostalgia. Não lhe bastava o mar infinito. Havia os Vazios, Desejos, Ausência imensa, Saudade de algo que lhe faltava. E ela sonhava com coisas longínquas, e as amava: florestas que nunca vira, e pensava que seria bom se, um dia, o mar e a selva se encontrassem e o azul e o verde se misturassem. Ela amava o mar que nela morava, e a selva, ausência, pedaço que lhe faltava. E cantava o nome do seu amado: “Os bosques são belos, sombrios, fundos…” (Frost). Seus olhos se voltavam então para o alto das montanhas, longe, e viam as silhuetas de árvores, no céu e imaginavam belezas e mistérios diferentes daqueles do mar. E amava a floresta com que sonhava. Seu pai nascera no meio da selva e o seu corpo crescera com árvores velhas de muitos anos, frutas silvestres de muitas árvores, musgos macios de muitos verdes, aves de vozes de muitos cantos, grilhos ocultos em muitas noites, correntes de águas de muitas pedras, flores silvestres de muitos cheiros, terra macia de muitos brotos, vidas que renascem de muitas formas… Ah! Assim era o seu corpo. “E como ele se entregava! Amava seu mundo interior, caos selvagem, bosque antiquíssimo, sobre cujo silencioso despertar verde-luz seu coração se reerguia” (Riilke). Mas ele também tinha um sentimento triste, vazio, doía-lhe o lugar da Falta. E quando o sol se punha sobre o mar, ele sentia uma nostalgia imensa. Como se a floresta não lhe bastasse, o desejo por algo belo-distante, ausente. E, da sombra verde das árvores, olhava a azul luz do mar, solene no horizonte, brincalhão na areia, e desejava mergulhar nele, e pensava que felicidade é isto: a selva penetrando no mar. Um dia os dois se encontraram, se amaram, a floresta mergulhou no mar, o mar abraçou a floresta, suas sementes se misturaram e uma criança nasceu… E ela tinha no seu corpo um pouco de mar e um pouco de selva… Ah! Felicidade maior não poderia haver, e até pensaram que seria eterna… Foram morar lá em cima, no lugar do pai, os três. Felizes…O pai, no seu mundo verde, velho amigo, conhecido. A mãe, no mundo verde, mistério com que sempre sonhara e desejara. A criança, feliz, por ser selva e ser mar. Mas o tempo passou e a felicidade acabou. No peito da jovem foi crescendo uma dor. Primeiro era saudade mansa que virou tristeza: e a floresta, tão bela de longe, virou prisão… E o jovem que tanto amara ficou estranho, gigante verde, senhor da floresta, seu carcereiro. Ah! Ela já não podia amar a selva e sua face se transtornou. E o mar que morava nela ficou sinistro, uma tempestade enorme cresceu por dentro, e no seu rosto quebraram ondas em cuja fúria até mesmo a criança se debatia. E a jovem virou tristeza por se ver assim, tão feia. (É preciso que você saiba disto: nós amamos as pessoas por aquilo que de belo elas fazem nascer em nós. Como se fossem espelhos. Se nos vimos belos naqueles olhos que nos contemplam, nós as amamos. Mas, se nos vimos feios, as odiamos…) E ela então compreendeu que, por mais belas que as matas fossem, ela seria sempre uma estranha, exilada, sem lar. E foi o que disse a seu companheiro, que a entendeu e disse que não importava. Viveriam à beira-mar para que ela reencontrasse a felicidade perdida. E assim aconteceu. A alegria voltou. Mas o tempo passou e a saudade chegou agora ao peito do jovem, onde a solidão foi crescendo, tristeza de quem vive em degredo, prisioneiro de ilhas cercadas de mar sem fim. E a jovem que ele tanto amara se transfigurou num mar de tristeza,ondas se repetiam de noite e de dia, sem parar: “Nunca mais, nunca mais…” E a floresta que morava nele se enfureceu, e acordaram os bichos sinistros que dormiam nela, cobras e escorpiões, e aflorou tudo naquele rosto outrora manso, e ele ficou sinistro, e havia fogo em seu olhar,e espinhos cortantes no seu falar. E ele chorou ao ver o espanto nos olhos da sua criança, espelhos tristes, e sentiu que já não era o mesmo, e nunca o seria, longe da selva, que era seu lar. E então compreenderam que, para continuar a ser belos, era preciso que o mar e a floresta fossem verdadeiros consigo mesmos e morassem nos seus lugares. E assim viveram, longe: a jovem, à beira-mar, saudosa da floresta, o jovem, na floresta, com saudades do mar… E é por isso que as pessoas se separam, por mais que isso as dilacere, para ficarem bonitas de novo e voltarem aos mares e florestas perdidos… Cada separação é uma busca de um amor que se perdeu: em cada partida, um desejo de reencontro.Quanto à criança, diziam os outros, que nada sabiam: “Não tem onde morar…” Ignoravam os mundos onde vivera e que no seu corpo pequeno moravam um mar e uma selva. E se ora estava com a mãe, à beira-mar, ora com o pai, na floresta, não é que um lar lhe faltasse. Ela era mar, era floresta, e podia sentir-se em casa onde quer que estivesse.
Texto lindo esse. Amo a forma que Rubem Alves escreve. Alguns de seus textos são mexem comigo! Tenha um ótimo dia! bjs
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